Você já ouviu falar no conto A Moça Tecelã, de Marina Colasanti?
É a história de uma artesã que, com um tear, constrói o mundo ao seu redor
Fio a fio, ela cria cenários, possibilidades, encontros. E quando algo já não faz sentido, ela desfaz o que
foi construído para poder recomeçar.
Ao ler esse conto, fui tomada por uma sensação familiar. Percebi que, de certa forma, a terapia também é um
trabalho como o da artesã: que pode e deve ser feito, desfeito e repensado conforme a vida anda
Cada sessão, e cada nova escolha, são como fios que se somam a outros. Alguns trazem
brilho, outros pedem reparo.
E é nessa mistura que nasce a trama única de cada vida que passa pelo meu caminho como psicóloga.
Na vida, muitas vezes, vivemos no automático até que algo nos faz parar e olhar para o que estamos
criando.É
nesse momento que a terapia pode entrar: como um espaço para desacelerar, observar com calma e escolher,
conscientemente, o que manter e o que deixar ir.
Ao escolher A Moça Tecelã como inspiração para o meu trabalho, quis trazer essa imagem: a paciência de esperar o
tempo certo, a atenção aos detalhes, a delicadeza de quem sabe que cada fio importa.
Porque, assim como no conto, acredito que cada pessoa carrega a habilidade de criar e recriar a própria
história. Às vezes, só precisamos de alguém para nos lembrar disso 🧡
Deixo aqui o conto de Marina Colasanti para ler, reler, e refletir:
“Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao
tear. Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos,
enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte. Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora
a hora, em longo tapete que nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos
do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos
longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela. Mas se durante muitos dias o vento
e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados,
para que o sol voltasse a acalmar a natureza. Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os
grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias. Nada lhe faltava. Na hora da fome
tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede
vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão,
dormia tranquila. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como
seria bom ter um marido ao lado. Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca
conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi
aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de
entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta. Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na
maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida. Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça
pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.
E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha
descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nascoisas todas que ele poderia lhe dar.
— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que
escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer. Mas
pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.
— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de
pedra com arremates em prata. Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e
escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela
não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o
ritmo da lançadeira. Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu
tear o mais alto quarto da mais alta torre.
— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as
estrebarias. E não se esqueça dos cavalos! Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o
palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que
queria fazer.
E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus
tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo. Só esperou anoitecer. Levantou-se
enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada
da torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado
para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins.
Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa
pequena e sorriu para o jardim além da janela. A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura acordou,
e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele
viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o
emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os
fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.”
COLASANTI,Marina.In: Contos brasileiros contemporâneos . São Paulo: Moderna,1991.